sábado, 27 de março de 2010

Colisão


Estou praticamente do avesso. Reconheço-me tão bem que passo a ter medo do espelho e não da imagem nele. Troco de espelho.
O sonho está quase acabando, anda fraquinho, perdendo a vontade pela pressa em não conseguir alcançar o rosto. O fundo do pote está cada vez mais perto dos olhos. Os cílios brigam encarcerados no desejo. Perco a fala, o olhar, o gesto, o riso e a prece. Volto pra mim em pedaços.
Existe uma colisão de invisibilidade no universo. As coisas se interceptam sem se tocar, encontram-se sem se saber, sabem-se sem se conhecer e não passam de estranhamento. Um descontentamento mensurável pelo cansaço e pelos sucessivos fracassos. O que os olhos veem é meramente ilustrativo, é casca, é faixa da fachada das nossas personalidades incompreendidas.
É estranho ouvir falar em amor e em todas essas outras coisas que todo mundo diz conhecer. Mas ninguém conhece o sangue correndo na veia. Ninguém consegue ver o que há por baixo da carne, a história que ficou da cicatriz, o riso que veio do choro, o contentamento que veio depois da perda, a cinza que ficou da carta, o suspiro depois do sonho, a infância reprimida que veio da falta de sensibilidade dos “gente grande”. Que se dane essa gente grande.
O amor é uma criança brincando de carrinho no meio da guerra.
Não há mais o crime do amor. Existem provas e testemunhas pra falta do crime. Somos condenados à vida eterna sem o amor do amor. Guardamos um crime refeito somente na mente. A cena do crime permanece intacta. Os instrumentos, as roupas, o caminho, o plano de fundo permanecem inalteráveis até que se prove o contrário do que não se acredita mais.
Acabo recriando os problemas que nem tenho mais, mas, ainda assim, volto no tempo em uma viagem interestelar para sofrer o peito, a alma fica bicuda pela estupidez da repetição.
Já tentei parar de tentar, mas o corpo não entende, a alma não compreende, o coração é analfabeto, a palavra é burra.
Uma razão pra voltar a amar?
Alguém que nunca te amou não pode fazer parte dos teus sonhos, não pode mais ser o santo no pedestal no meio da sala. Não dá mais para querer redesenhar o quadro. Existe uma fronteira daqui para o passado. O passado é o quintal das lembranças.
Esvazie o coração. Até a tinta do lápis acaba e é hora de recomeçar. Você não merece a inquietação das cadeiras. Dói ter alguém somente no pensamento, uma hora não se sabe mais o que fazer.
Nada mais abalável do que uma vida em paz.
Leandro Lima